quarta-feira, 27 de abril de 2011

Um conto, inventado ou não, é sempre um conto...

Sofia e a filosofia da vida


                                                              

Era uma vez uma menina tão solitária que nem mesmo a solidão queria fazer companhia a ela. Vivia em uma casa simples com sua mãe, pois seu pai morrera antes dela nascer. Passava a maior parte do tempo entre os livros das bibliotecas da cidade, lendo contos e histórias maravilhosas em que princesas, quase sempre, presas em castelos esperavam a chegada de um príncipe disposto a salvá-las. Adorava ler enquanto aguardava sua mãe retornar do duro trabalho que mantinha como empregada doméstica. A leitura era a rota de fuga de sua dura realidade. 
Os contos que lia e que lhe serviram de refúgio durante boa parte da infância aos poucos foram lhe inquietando a alma. Na medida em que adolescia, a menina começou a reparar nas diferenças entre ela e as protagonistas de suas obras preferidas. As princesas eram sempre lindas, claras e delicadas, enquanto ela: negra, gordinha e desastrada não poderia jamais ser resgatada de seu “cárcere” por quem quer que fosse. 
Os contos que até então lhe traziam tanta felicidade começaram a lhe fazer mal. Ela sabia que sua personalidade não possuía nenhum dos atributos das heroínas dos contos que, até então, lera. Pela primeira vez em sua vida solitária ela sentiu o gosto da real infelicidade. “Trancada” em um casebre, estudando em escolas públicas e tendo como companhia apenas os livros que tirava emprestado das bibliotecas, ela jamais teria condições de encontrar a mesma felicidade que conhecera nos contos. 
Preocupada com sua situação, na busca de um final feliz para si, a menina resolveu “abandonar” os contos de fadas e mergulhar em pesquisas. Leu de tudo: filósofos, antropólogos, cientistas, sociólogos, filólogos... Em nenhum deles ela conseguiu encontrar uma resposta para suas ansiedades. Certa noite, exausta de tanto ler ela acabou adormecendo sobre os livros. Em seu sonho havia um grande salão, primorosamente decorado, repleto de distintos homens e damas tão bem vestidas e enfeitadas que pareciam sair de um de seus contos de fadas. Ela também estava lá e sentia-se observada por todos. Um misto de medo e vergonha fizeram suas bochechas rosarem.  
-Por que todos me olham dessa forma? Será que estou mal vestida? Pensava a garota. 


A menina caminhou pelo salão, buscando fugir dos olhares que lhe perseguiam onde quer que fosse. Em umas das mesas, ao lado do Buffet, conversavam dois rapazes, animadamente. Eles, ao perceberem sua aproximação levantaram-se, cordialmente, chamando-a pelo nome.


- Sofia! Dê-nos o prazer e a honra de sua companhia! Falaram os dois, arrastando a cadeira para que ela sentasse.


- Como eles sabem o meu nome? Pensou a menina atordoada.
Apesar de assustada a garota aceito o convite e sentou-se junto aos rapazes que se levantaram enquanto ela acomodava-se na cadeira ofertada.


- Pensei que não virias mais. Disse o rapaz sentado á sua direita.
Sem entender nada ela indagou:


_ Quem são vocês? Onde estou e por que todos me olham?


- Quem somos nós?! Retrucou o rapaz ainda mais surpreso do que ela.


- Somos seus amigos de larga data. Você nos conhece desde muito menina. Viemos aqui a seu convite. Todos foram convocados a comparecer sem falta.


- Eu os convidei? Pergunta a menina, espantada.


- De certa forma, sim, você nos convidou. Está vendo aquela mesa ao lado da nossa? Lá está Lewis Carrol, autor de “Alice no país das Maravilhas”, e Carlo Collodi responsável pela história do “Pinóquio”. Na outra mesa estão Charles Perrault com sua sobrinha Marie-Jeanne L'Héritier de Villando, conversando com Hans Christian Andersen. Lembra-se deles, não?
Na medida em que os homens iam apresentando os participantes da festa, a garota começava a entender o que acontecia...


Quase não acreditava, estava rodeada pelos autores de suas obras favoritas. Mas os autores não estavam sozinhos, eles traziam também suas personagens.  Um cisne desfilava orgulhoso pelo salão ao lado de uma pequenina menina, seria a Polegarina com o Patinho feio? Pinóquio, esse ela teve certeza, tentava se esconder dos três porquinhos atrás das cortinas do salão. Alice tomava chá com o Chapeleiro Maluco.  Enquanto Rapunzel tropeçava em suas tranças dançando com o Gato de Botas. Tudo estava se esclarecendo... Os personagens e seus criadores estavam reunidos em seu sonho. Mas, por que eu os convocaria, continuava a menina intrigada.


- Meu nome é Jacob e este é Wilhelm, meu irmão. Disse o rapaz sentado à sua esquerda.


- Vocês são os irmãos Grimm?! Estou sentada na mesa com os verdadeiros irmãos Grimm?! Exclamou a garota, embevecida.


- Sim. Responderam em coro os dois rapazes.


- Estamos aqui para que você conheça nossas personagens. Disse Jacob.


- As princesas? Essas eu conheço bem. Disse a menina sem titubear.


- Na verdade, esse evento foi organizado para que as princesas conhecessem você. Todas elas são grandes fãs sua. Explicou Wilhelm.


O que Sofia não sabia é que enquanto lia as personagens lhe observavam. Podiam sentir todas as emoções que Sofia sentia. Queriam dizer a ela o quanto a admiravam. Aos poucos as princesas foram cercando a menina e enchendo-a de perguntas:


- Como é perder um dente?


- Como você vive sem uma fada madrinha?


- Como é viver sem saber do próprio destino?


- Quem é o autor da sua história?


As perguntas feitas todas ao mesmo tempo foram deixando a menina sem saber o que responder primeiro.


-Não sou uma personagem. Perder um dente quando é de leite não dói nadinha. Na vida real, não temos fadas madrinhas. Até existem os que têm madrinhas, mas elas não possuem poderes mágicos. Respondeu a menina.


- Mas como você supera suas dificuldades, sem o auxilio de seres mágicos? Questiona uma das princesas, aflita.
Sofia não conseguia responder o que se referia ao destino e a superação de dificuldades,  muito menos sobre quem seria o autor da sua história.


-Na vida real não seguimos roteiros nossa vida não tem “autoria”. O nosso destino não determina um final feliz para todos. Somos nós  mesmos que o criamos, eu acho... Responde a garota titubeando.


-Nossa, queria ter essa coragem! Escolher cada passo da própria vida deve ser difícil. Afirmaram as princesas, em coro, admiradas.


Ao dizer isso Sofia deu-se conta do poder que tinha nas mãos. Era mais do que magia... Não havia feitiço igual. Ela podia construir sua história de vida, brincando com o destino conforme lhe agradasse. Isso nenhuma das princesas poderia fazer. 
As princesas fizeram fila para pedirem autógrafos à garota. Ao terminar a primeira dedicatória a menina acordou.


Ainda sonolenta e atordoada, entendeu. Com ou sem castelo, com ou sem príncipe, com ou sem fadas madrinhas ela era a heroína de sua história.  Dependia dela, e apenas dela, seu final feliz.


Muitos outros encontros festivos ela teve com as personagens de seus contos favoritos. Mas, dessa vez, ela soube responder todas as perguntas.


Direito e Literatura

Check out this SlideShare Presentation:

quarta-feira, 13 de abril de 2011

UMA RELEITURA DE MINHAS LEITURAS


No último semestre do curso de Letras, fui desafiada a relembrar meu “histórico literário”.  Mergulhando em memórias, não foi difícil recordar o episódio literário mais famoso de minha vida, pois rende muita risada nas reuniões familiares até hoje.  Muito antes de aprender a ler, em uma época onde Google e Internet não existiam, as pesquisas dependiam exclusivamente de livros. Era comum as famílias da década de 1980 comprarem enciclopédias e almanaques, nada baratos, para auxiliar nas pesquisas escolares de suas crianças. Minha mãe, já  mãe de duas meninas e grávida de gêmeos - meu irmão Lucas e eu - e que de boba não tinha nada,  tratou de comprar uma enciclopédia Barsa com todos os seus doze volumes editados em capa de couro verde. Viva a prestação!
Como minhas irmãs eram muito jovens para utilizarem os livros em suas pesquisas, então a mãe decidiu não retirar os livros de suas embalagens e guardá-los em um lugar onde estivessem a salvo de qualquer traquinagem de suas filhas mais velhas. Sendo assim, deixou a caixa com todo o tesouro de conhecimento contido em seus doze volumes, pago em 12 prestações, no quarto de seus filhos gêmeos recém-nascidos, certa de que não haveria outro lugar mais seguro.  Em verdade, devido à tenra idade, não recordo do ocorrido, mas dizem as más línguas que eu e meu irmão passamos uma manhã silenciosamente suspeita, despertando a curiosidade materna. Preocupada, ela foi verificar o que seus dois “anjinhos” estavam aprontando. Qual foi sua surpresa ao constatar que cada um de seus rebentos sugava, pois ainda não tinham dentes, um volume de seu tesouro, ainda não completamente pago. Fomos apelidados de traças e minha mãe levou exatos 12 meses para começar a achar graça dessa história.
Foi assim o primeiro contato que tive com a “Literatura” -- literalmente visceral, letras e trato intestinal, foi a primeira vez que devorei um livro. Com o passar do tempo viriam outros, mas até lá já teria aprendido a apreciá-los de forma menos ávida. Meus pais acharam melhor estimular o quanto antes a leitura de algumas obras infantis, até para evitar a praga que atacara outrora sua enciclopédia.
Durante toda a infância, fui obesa e isso não me permitia brincar com as demais crianças de igual para igual. Era sempre “café com leite” – aquela criança que é a última a ser perseguida no “pega-pega” para dar tempo que ela fuja -- o que me desestimulava a investir nas brincadeiras com outras crianças. Preferia ouvir e fingir ler minhas histórias. Certa vez, meu pai me deu um livro, mas infelizmente, não recordo o nome nem o enredo. Lembro-me de vir junto com o livro um disquinho em que podia escutar a narração de uma história sobre uma lua que queria se enfeitar e tentava conseguir um batom com um cavalheiro que lhe fazia a corte. A história, como já disse, não recordo bem, mas lembro como se fosse hoje de ouvir a trilha de Caetano Veloso, Lua de São Jorge. Eu adorava!
Tinha também uma coletânea de contos de fadas da Disney Quatro Estações. Eram trezentos e sessenta e seis contos, um para cada dia do ano.  Era muito difícil de conseguir fazer alguém ler uma história para mim. Minhas irmãs achavam que era coisa de criança e a vó era semialfabetizada, mas nos finais de semana, às vezes, conseguia fazer a mãe esquecer seu cansaço e realizar essa leitura mesmo sob protestos das irmãs.
Certa vez, na Páscoa, quando todos esperávamos para receber nossos ninhos repletos de chocolates e bombons a mãe resolveu inovar. Há muito que ela brigava com a vó para me colocar em dieta, precisava emagrecer, mas minha avó era da época em que criança saudável era criança gorda! Pensando em me estimular a parar de comer tanto, a mãe comprou uma barra de chocolate diet e um livrinho que tinha duas histórias narradas em fita de áudio. Não recordo da segunda história, mas a primeira, essa sim me marcou muito. Seu nome? Dumbo, o elefantinho valente!
Meus irmãos riram de mim, dizendo que eu era a Dumbinha da mãe. Ela não sabia se os xingava, ou se me consolava. O fato é que levei um ano para ouvir pela primeira vez a história de um elefante de orelhas disformemente grandes que um dia, aconselhado por um amigo do circo, resolve voar com o auxilio de uma pena mágica. O elefante perde a pena e pensa que não poderá mais voar até que seu amigo que, se não me falha a memória é um rato, decide contar-lhe a verdade. A pena não possui nada de magia. A história é linda, mas até hoje penso no que teria motivado minha mãe a escolher justamente esse livro.
O tempo foi passando e influenciada por minhas irmãs aprendi a gostar de Legião Urbana ao invés de Xuxa. Já por influencia de meu pai, aprendi a ouvir Toquinho, Vinícius, Tom Zé, Geraldo Vandré e outros compositores que me despertaram o gosto pela poesia antes mesmo de completar 10 anos. Não era muito inteligente, mas tinha uma curiosidade incrível. Após ouvir uma das músicas da Legião Urbana fiquei intrigada com um trecho que dizia: 

Estou cansado de ouvir falar
Em Freud, Jung, Engels, Marx
Intrigas intelectuais
Rodando em mesa de bar

(Renato Russo, 1987)

Lembro de ter enlouquecido, tentando descobrir quem eram os intelectuais que rolavam em mesas de bar, e, antes disso, precisava descobrir também o que significava ser um intelectual. Por causa desta música, li o Capital, de Carl Marx, aos 12 anos. Não entendi nada, mas fiz questão de ler inteiro! As músicas me apresentaram um universo novo e sedutor. Eu descobri que Brasília não era apenas um carro, o que significava ser démodé, o que era a Conexão Amazônica, onde fica Angra dos Reis, de onde vinha e para que servia o óleo de linhaça. Graças à música Monte Castelo descobri uma história de guerra que jamais estudei na escola, além de ser apresentada a um dos poemas mais lindos de Camões. Aprendi a diferença entre plágio e paráfrase.  “O amor é o fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente” – qual foi minha surpresa ao descobrir que a letra não era, exatamente, de Renato Russo, tão pouco de Camões, isso também estava na bíblia!
Mergulhava tão profundamente nas letras de música que desenvolvi uma facilidade incrível de decorá-las em pouquíssimo tempo. Quando já estava no 2° grau, uma professora ficou chocada ao perceber que eu sabia recitar O Navio Negreiro, de Castro Alves, sem precisar ler. Aprendi com meu pai enquanto ele ouvia um disco em que Maria Betânia interpretava o poema. No vestibular, lembro-me de ter acertado uma questão sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha por causa da música Tropicália, de Caetano Veloso.
Com o passar dos anos perdi um pouco do ímpeto curioso da infância em que consultava no dicionário 3 em cada 5 das palavras que lia, mas jamais abandonei o hábito de ler uma boa obra. A paixão pela Literatura me colocou no curso de Letras. No do curso conheci teóricos que transformaram minha idéia de leitura. Apaixonei-me pela definição de “clássico”, de Italo Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Surpreendi-me ao constatar pessoalmente a eficácia das estratégias de leitura apresentadas por Ingedore Koch e Angela Kleiman. Identifiquei-me com os entusiastas da Literatura como Plauto Faraco, François Ost, Italo Calvino, Antonio Candido, etc.
Foi assim que a Literatura entrou em minha vida: aos poucos. Primeiro pelo estômago, depois pelo ouvido e quando me chegou aos olhos, consequentemente, à cabeça, tomou-me o corpo por inteiro. Não tenho certeza se alcançarei grande sucesso em minha vida profissional, mas tenho certeza de que sempre poderei recorrer a uma leitura bem sucedida. Minha história com os livros está apenas iniciando, mas como não poderia deixar de ser, encerro meu relato com o poema de Caetano Veloso.
Livros
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.

Entre a ficção e a realidade

                                                                                        

Ao resgatar a história emocional do personagem Coetzee, o autor John Coetzee cria,  em Verão, uma metaficção em torno de si mesmo, revelando a atmosfera de conflitos reais que assolam o continente africano. O livro começa com o relato de uma reportagem, do jornal inglês Sunday Times a 22 de agosto de 1972, sobre um atentado real ocorrido em Francistown, na cidade de Botswana. Homens, aparentemente, negros teriam arrombado uma residência sul-africana, atirando em seus habitantes e depois ateado fogo na casa. Alguns vizinhos ouvem os arrombadores falarem em africânder  – linguagem utilizada por emigrantes de origem holandesa, francesa e alemã que se estabeleceram no sul do continente africano, entre os séculos XVII e XVIII – entre si, supondo que o atentado teria sido cometido por sul-africanos brancos para incriminar, o já segregado, grupo dos negros. É possível inferir que o ódio entre as raças era mantido, em parte, por falsos ataques, mantendo o medo na comunidade branca em relação à comunidade negra. O relato nos remete a outra obra do autor Coetzee, À espera dos bárbaros (2006), cuja narrativa gira em torno de um magistrado que rege um povoado em pânico pela possibilidade de ser atacado por um grupo de bárbaros que jamais aparece. Em nome desse medo os soldados tratam os forasteiros com as piores formas de torturas.

Em outra passagem, podemos observar a desvalorização da comunidade negra pela comunidade branca durante a apartheid. A personagem Coetzee causa espanto em sua vizinhança ao realizar reformas em sua casa com suas próprias mãos, como podemos observar no relato de Julia:
O esquisito é que não era costume, naquela época, um homem branco fazer trabalho braçal, trabalho não especializado. Serviço de cafre, era como se chamava no geral, trabalho que se pagava para alguém fazer. Não era exatamente vergonhoso ser visto mexendo a areia com uma pá, mas era por certo constrangedor, entende?(COETZEE, p. 29)
Ao falar da visita de Breyten Breytenbach, Coetzee nos apresenta uma importante personagem de luta contra a segregação racial. O autor nos remete a Lei de Imoralidade (1950) que proibia o casamento e o envolvimento sexual entre pessoas de raças diferentes, considerando essa conduta como um ato de alta traição, sendo o infrator condenado à prisão. No episódio relatado, Breyten após ter se casado com uma francesa de origem vietnamita é impedido de regressar ao continente africano; ele recebe permissão de visto do Ministro do Interior para regressar com sua esposa em visita à cidade de Cabo. Para o autor a lei é “o esquema utópico de separação forçada de raças”. Seu comentário, supostamente pessoal, ele ainda evidencia a hipocrisia do ato: “A explorar: a inveja que sul-africanos brancos (homens) sentem de Breytenbach por sua liberdade de viajar pelo mundo e seu acesso ilimitado a uma bela e exótica companheira sexual” (p.15). Segundo registros históricos oficiais, Breytenbach foi condenado a sete anos de prisão pelo crime de alta traição em 1975 ao retornar à África do Sul em uma viagem clandestina.

No relato da brasileira Adriana, por quem a personagem Coetzee teria tido uma paixão “platônica”, é possível detectar a segregação territorial e social existente entre os africânderes e os negros. “Eu nunca simpatizei com africânderes. Conhecia uma porção de africânderes em Angola, trabalhando nas minas ou como mercenários no exército. Eles tratavam os negros como lixo” (COETZEE, p.165). Quando a personagem Coetzee convida-a para realizar um piquenique com seu pai e suas duas filhas, Adriana relata: “[...], até um parque, não me lembro do nome agora, onde havia pinheiros e locais entre eles onde as pessoas podiam fazer piqueniques, só brancos, claro[...]"( p.175).

Na obra de Coetzee, podemos encontrar um mosaico de ficção e realidade. Fatos reais como a transferência de Nelson Mandela para o presídio de Pollsmoor e seu anterior encarceramento na ilha de Robben, estão presentes na narrativa de uma personagem totalmente ficcional. Através do diálogo entre Vicent e Sophie, o autor parece explicitar o propósito de sua obra:
“Madame Denoël, examinei as cartas e os diários. Não dá para confiar no que Coetzee escreve, não como registro factual – não porque ele fosse mentiroso, mas porque ele era um ficcionista. Nas cartas, ele inventa uma ficção de si mesmo para seus correspondentes; nos diários ele faz a mesma coisa para os próprios olhos, ou talvez para posteridade. Como documento, são valiosos, claro; mas quando se quer a verdade, é preciso procurar atrás das ficções ali elaboradas e ouvir as pessoas que conheceram Coetzee diretamente, em pessoa.”Afirma Vicent. “Mas e se fossemos todos ficcionistas, como o senhor chama Coetzee? E se nós inventarmos histórias sobre nossas vidas? Por que o que eu disser sobre Coetzee haveria de merecer mais crédito do que aquilo que ele próprio diz?” (COETZEE, p.234)
O relato de Adriana, uma bailarina brasileira, mãe de uma de suas alunas, por quem Coetzee teria nutrido uma suposta paixão platônica. Casada com Mario, homem que perseguido pelos militares no Brasil durante a ditadura refugia-se na cidade de Angola com sua esposa e duas filhas. Na cidade de Angola ela trabalhava no Balé Nacional enquanto o marido trabalhava em um jornal, até que o governo decreta estado de emergência e passa a recrutar todos os homens com menos de quarenta e cinco anos, ainda que não fossem naturais da região. Eles precisam permanecer na África por acreditarem que seria muito arriscado regressar ao Brasil, pois, em 1973, o Brasil vivenciava o auge do período ditatorial – e, por isso, decidiram fugir de navio para cidade do Cabo onde passaram a viver junto a um primo de seu marido. “Quando chegamos ficamos com ele e a família, foi difícil para nós, nove pessoas em três cômodos, enquanto esperávamos nossos documentos de residência”. Seu marido sofre um ataque enquanto trabalhava como segurança em um armazém e fica em coma por um ano antes de falecer. Adriana compara o sistema burocrático brasileiro e a existência de “facilitadores”, chamados de despachantes que facilitam o trâmite e a emissão de documentos dentro do Brasil, com a falta de assistência aos brasileiros no território africano, o que fica evidente no trecho:
Se nós fossemos portuguesas teria sido diferente. Havia muitos portugueses indo para a África do Sul naquela época, de Moçambique e Angola, até da Madeira, havia organizações de ajuda aos portugueses. Mas nós éramos do Brasil e não havia regulamento para brasileiros, nenhum precedente, para os burocratas era como se a gente tivesse chegado de Marte ao país deles (COETZEEp.185-86)
Ao trabalhar como professora de dança latino-americana para um grupo formado em sua maioria por negros, Adriana descreve o grupo com simpatia:
Eu gostava deles. Eram gente boa, amiga, gentil. Tinham ilusões românticas sobre a América Latina, sobre o Brasil acima de tudo. Muitas palmeiras, muitas praias. No Brasil, eles pensavam, as pessoas como eles se sentiriam em casa.(COETZEE,p.190-91)
A descrição da personagem Coetzee feita pelas personagens femininas transparece, no primeiro momento, uma excessiva falta de talento para a vida sexual e social, transformando a personagem central em um “desajustado”. As obras de Coetzee costumam apresentar personagens com problemas em manter relacionamentos com mulheres e que constantemente entram em conflito com as “regras sociais”.

Julia, a primeira entrevistada, é uma mulher ousada de personalidade forte e que parece ter consciência elevada de sua condição feminina. A personagem Coetzee aparece em sua vida como uma forma de vingar-se das traições de seu marido. Ela o descreve como um homem nada atraente: “Era como se tivesse sido borrifado da cabeça aos pés com um spray neutralizador, um spray assexuado”. A seu ver, ele mantinha uma postura de desânimo e fracasso, apesar de ser inteligente: “[...] então, se não fosse inteligente, não sobrava mais nada para ele ser [...]”.

Margot, a segunda entrevistada, é prima mais velha da personagem Coetzee. Uma mulher casada, recatada, dócil que assim como seu primo é contra a apartheid o que podemos evidenciar no trecho em que ela encontra-se com a enfermeira negra Aletta e o motorista da ambulância também negro. “Eu gostaria de oferecer a eles dois um café na lanchonete, gostaria de sentar com eles de um jeito amigo, normal, mas claro que não podia fazer isso sem provocar confusão.” Ela preocupa-se demasiadamente com a opinião dos outros e, por isso, pondera as palavras. Sente um misto de culpa e pena por seu primo ser solitário, amargo e incompreendido pelos demais familiares que o enxergam como um criminoso por ter sido deportado dos EUA. “Ele é metido, diz Carol. Se tem em alta conta. Não suporta se rebaixar a conversar com gente comum. [...], fica sentado num canto com um livro.” Seu primo, para ela, era um homem frágil, introspectivo, assexuado, solitário e presunçoso.

Para Adriana, brasileira mãe de uma de suas alunas, Coetzee era um homem desprovido de virilidade celibataire: “Quer dizer não só um solteiro, mas também não adequado ao casamento, como um homem que passou a vida no sacerdócio e perdeu a virilidade, ficou inapto para as mulheres [...] Mas havia uma qualidade que ele não tinha e que uma mulher procura num homem, uma qualidade de força, de masculinidade.” Coetzee, segundo Adriana, era um homem louco, doentio e imaturo.

Sophie foi colega de Coetzee na Universidade da Cidade do Cabo. Aparentemente, ela é a única mulher com quem a personagem Coetzee se envolveu em um relacionamento amoroso real e que nutria por ele alguma admiração. Ele é descrito por ela como um homem frio, dono de um idealismo utópico. Para Sophie, seu relacionamento com Coetzee “foi essencialmente cômico. Cômico-sentimental.” Mas ele também teve uma relevância grande em sua vida, conforme identificamos no relato: “Porém com um outro elemento que eu não posso minimizar, ou seja, que ele me ajudou a escapar de um mau casamento e por isso sou grata até hoje.”
 
Martin foi o único homem entrevistado. Ele teria conhecido a personagem durante a entrevista de emprego para lecionar na Universidade da Cidade do Cabo. John teria perdido a vaga para Martin. Para o entrevistado, John não sabia “ler as intenções por trás de uma pergunta”, era “deficiente de habilidades pessoais”. Coetzee sentia-se como um estrangeiro dentro de sua terra de origem; pessoalmente, ele tratava os sentimentos como transitórios e não se comprometia emocionalmente. Como professor ele não merecia destaque. Segundo Martin, “John era um acadêmico perfeitamente adequado, mas não um professor notável. Talvez se ele tivesse ensinado sânscrito fosse diferente, sânscrito ou qualquer outra disciplina em que a convenção permita que você seja um pouco seco e reservado”.

Para o crítico Antonio Candido, existem duas verdades: “a verdade da existência” e “a verdade da ficção”. Na entrevista concedida por Margot, lê-se: Eles falam africânder entre si. O africânder dele é hesitante; ela desconfia que ele fala inglês melhor que africânder, embora ela raramente tenha necessidade de falar inglês, vivendo no campo, na platteland. Mas eles falam africânder um com o outro desde criança; ela não vai humilhá-lo se oferecendo para mudar. (p.101).
A biografia de Coetzee, criada por ele mesmo, em três volumes, parece ser uma resposta as perguntas sobre sua vida pessoal. Toda a obra é ficcional. No entanto, o autor entrelaça a ficção com elementos factuais históricos ao relatar fatos como: o atentado ocorrido em Francistown, na cidade de Botswana; a visita do poeta Breytenbach ao território africano e a situação dele com o governo local; a prisão de Nelson Mandela; a ditadura militar no Brasil, etc. Numa leitura superficial da obra, a mistura de registros históricos reais com as descrições das personagens entrevistadas pode nos induzir a acreditar que tudo seja real. Ao realizarmos uma leitura atenta somos capazes de perceber que o autor cria propositalmente essa ilusão como se evidencia na fala da personagem Sophie: “Ele acreditava que nossas histórias de vida são nossas para construir como quisermos, dentro ou mesmo contra os limites impostos pelo mundo real”.

A imagem da personagem Coetzee, criada pelo autor Coetzee, nos faz refletir sobre a verdade por trás da narrativa. Até que ponto se pode ler uma biografia, ou qualquer outro registro histórico, com a certeza de que seu conteúdo é totalmente “verídico”? O autor parece nos dizer que, independente de quem escreva a história, o resultado será sempre parcial e tendencioso. A verdade existe apenas dentro do fato, dentro da narrativa de Coetzee ela se transforma em verossimilhança, uma mimese da realidade.

Considerando a fala de Sophie, podemos destacar o trecho em que o autor apresenta um exemplo de verdade parcial: “Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil.” Durante a entrevista com a bailarina Adriana podemos identificar a inferência do autor ao falar dos Latino-americanos como um povo “gentil”, “amável” e “amigo”; local onde o negro pode se sentir em casa. No Brasil, apesar de não vivenciarmos a segregação racial da mesma forma que se evidencia no território africano, existe o racismo, existe a separação por raças dentro do território brasileiro. A visão parcial de uma realidade nos leva a acreditar em fatos duvidosos, reproduzindo pensamentos que nem sempre condizem com a realidade. Refletir sobre a verdade ficcional e a verdade factual é um exercício trabalhoso e necessário, essa parece ser a mensagem de sua obra: Leia tudo, mas não acredite em tudo.