quarta-feira, 18 de maio de 2011

A VOZ DOS MUDOS



  Karin Strobel apresenta em seu artigo uma retrospectiva histórica da comunidade surda dentro da sociedade. O texto apresenta-nos o destino das crianças nascidas com “algum tipo de deficiência” na antiguidade, a marginalidade a que foram fadados os surdos trancados em celas, asilos, hospitais e calabouços que durante séculos tiveram a ausência de voz vinculada à ausência intelectual até as discussões atuais quanto a inclusão da comunidade surda no universo escolar.
   Segundo a autora, as modificações propostas para um sistema de ensino que pretende ser considerado inclusório não pode fundamentar-se apenas no ponto de vista da comunidade ouvinte. Para que se possa estabelecer a inclusão dessa parcela da sociedade é necessário que a consideremos como grupo social, reconhecendo sua identidade, linguagem e cultura. Mesmo com todas as conquistas da comunidade surda as leis permanecem não respeitando o pensar desses indivíduos, impelindo-os a um processo igualmente excludente.

Isto nos faz repensar bem se a inclusão social oferecida significa integrar o surdo. Na verdade, com esta situação citada anteriormente a palavra correta não é ‘inclusão’, e sim uma forçada ‘adaptação’ com a situação do dia-a dia dentro de sala de aula (STROBEL, 2006, p.252).
    A preparação dos profissionais da educação para o trabalho com surdos não tem sido satisfatória e é refletido no fracasso escolar desse grupo. Para criança em fase escolar o aprendizado precisa fazer sentido, ser pertinente ao seu contexto social. Fazê-la pensar que só existe uma forma dela compreender o universo e que para participar ela precisa se adaptar é fadá-la ao fracasso.
José Geraldo Silveira Bueno, em Surdez, linguagem e cultura faz uma análise crítica baseado em três pontos: a história, a abordagem multiculturalista e a normalidade-patologia, buscando superar as questões que categoriza dicotomicamente a "sociedade ouvinte" e "comunidade surda".


Somente no momento em que nos debruçarmos sobre o fenômeno social da deficiência auditiva, levando em consideração as restrições efetivamente impostas por uma condição intrinsecamente adversa (a surdez), aliada às condições sociais das minorias culturais, determinadas por diferenças de classe, raça e gênero, estaremos avançando no sentido de contribuir efetivamente para o acesso à cidadania, acesso esse historicamente negado, quer pelos defensores do oralismo, quer pelos defensores da língua de sinais, na medida em que nenhum deles conseguiu, efetivamente, se desvincular das manifestações específicas geradas pela surdez (BUENO, 1996).
    
    Para Zuleide Rodrigues, é papel do professor não cruzar e buscar o constante aperfeiçoamento. Com o desenvolvimento tecnológico os educadores devem buscar recursos, usando novas tecnologias, criando espaços específicos para as diferentes disciplinas facilitando a integração de todos.
      Acredito que com advento tecnológico a integração social das comunidades surdas com os ouvintes é facilitada. Existe, no entanto, outra adaptação necessária para que a interação entre ouvintes e surdos possa ser realizada com maior naturalidade. A comunidade ouvinte precisaria ter acesso a linguagem de sinais, pois dentro e fora do universo escolar as pessoas deveriam estar preparadas para interagirem entre si, sem constrangimentos maiores .  

sábado, 14 de maio de 2011

PALIMPSESTOS

                                                                                        
                                                                          



GENETTE, Gerárd. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães e Maria Antonia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade das Letras.2006.

                                 
                                     
                                         

O crítico literário francês e teórico da literatura Gerárd Genette (1930) observa na obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão que o objeto da poética não é o texto em si, mas o arquitexto – a arquitextualidade do texto definida como o conjunto das categorias gerais ou transcendentes como, por exemplo: os tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc. Delimitando ainda mais seu conceito quanto ao objeto da poética o teórico aponta a transtextualidade, ou transcendência textual do texto: “tudo que coloca em relação, manifesta ou escrita com outros”, como sendo o principal objeto de estudo da poética. O teórico desenvolve sua análise sobre as relações textuais através da analogia entre os antigos pergaminhos de couro - cujas inscrições eram sobrepostas após a raspagem do texto anterior - e a criação literária. 


Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma outra obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expões e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor. (GENETTE, 2006). 


A busca pela determinação de parâmetros que possibilite a análise de textos literários é definida, pelo próprio teórico, como inacabada. Evidenciamos sua consciência de que sua teoria seria “provisoriamente” satisfatória ao verificarmos o início de sua abordagem em que é determinada pela data – 13/10/1981. Até aquele exato momento foram identificadas, pelo teórico, cinco classes textuais, ou cinco formas de transtextualidade que foram elencadas em ordem crescente de abstração, implicação e globalidade.

INTERTEXUALIDADE: termo explorado por Julia Kristeva em sua obra Introdução à Semanálise - é caracterizado por Gerárd Genette pela co-presença de dois ou vários textos, ou seja, a presença efetiva de um texto em outro. Tais relações podem se estabelecer de três formas distintas:


  • Citação: forma mais explícita de intertextualidade (com aspas, com ou sem referência precisa),
  • Plágio: Forma menos explícita e menos canônica é um empréstimo não declarado.
  • Alusão: caracterizado por um enunciado cuja compreensão plena supõe a percepção de uma relação entre ele e outro.

PARATEXTO: relação, menos explícita e mais distante da obra, constituída pelo conjunto apresentado em uma obra literária como, por exemplo: o título, o subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos; notas marginais, de rodapé, de fim de texto, epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, etc.

METATEXTUALIDADE: é a relação – comentário – que une um texto a outro do qual ele fala, sem citá-lo, necessariamente; em alguns casos sem nomeá-lo.

HIPERTEXTUALIDADE: tema que o autor se detém a analisar com maior profundidade na obra é a relação que une um texto B (hipertexto) a um texto A (Hipotexto), do qual ele brota.

ARQUITEXTUALIDADE: de caráter taxonômico, determinando o status genérico de um texto. Geralmente, essa ralação está presente no título ou subtítulo da obra como, por exemplo: Poesias, Ensaios, Novela...

Gerárd Genette detém-se nas questões hipertextuais, explicitando que o hipertexto é todo texto derivado de um texto anterior; tal relação se estabelece por dois tipos de processos o de transformação simples, ou direta, e o de transformação indireta, ou imitação. Compreende-se transformação simples como o processo em que um texto B, apesar de não citar o texto A, não poderia existir sem o texto A. Segundo Genette, a Eneida e Ulisses são exemplos de hipertextos oriundos de um mesmo hipotexto: a Odisséia. A transformação que conduz a Odisséia a Ulisses pode ser descrita como uma transformação simples, ou direta: aquela que consiste em transportar a ação da Odisséia para Dublin do século XX. A transformação que conduz da Odisséia a Eneida é mais complexa e mais indireta, pois Virgílio não transpõe de Ogígia a Cartago e de Ítaca ao Lácio, a ação da Odisséia: ele conta uma outra história completamente diferente, mas, para fazê-lo, se inspira no modelo estabelecido por Homero na Odisséia, imitando-o. A transformação indireta, ou imitação exige a constituição prévia de um modelo de competência genérico, extraído de uma performance única, e capaz de gerar um número indefinido de performances miméticas.
Antes prosseguir seu aprofundamento quanto ao hipertexto, o teórico alerta para a necessidade de não considerarmos cada uma das cinco relações transtextuais como classes estanques, sem comunicação ou interseções. Outra preocupação teórica de Genette refere-se à classificação de hipertexto como uma classe textual e não como um aspecto do texto. Genette acredita que as diversas formas de transtextualidade e seus diferentes graus sejam simultaneamente aspectos e categorias do texto.

 [...] todo texto pode ser citado e, portanto, tornar-se citação, mas a citação é uma prática literária definida, que transcende evidentemente cada uma de suas performances e que tem suas características gerais; todo enunciado pode ser investido de uma função paratextual, mas o prefácio é um gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente um gênero; somente o arquitexto, certamente, não é uma categoria, pois ele é, se ouso dizer, a própria classificação (literária)[...] E a Hipertextualidade? Ela também é um aspecto universal da literalidade: é próprio da obra literária que, em algum grau e segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido, todas as obras são hipertextuais. (GENETTE,idem,p.18).


A afirmação de que todo texto é um hipertexto aproxima a teoria de Genette da teoria bakhtiniana ao determinar a não existência uma consciência germinada dentro de um único indivíduo, pois, segundo o autor, o signo é um fenômeno do mundo, pertence à experiência exterior. “Da mesma forma posso buscar em qualquer obra os ecos parciais, localizados e fugidios de qualquer obra anterior” (Genette, idem, p.18).

[...]toda situação redacional funciona como um hipertexto em relação à precedente, e como um hipotexto em relação à seguinte. Do primeiro esboço à última correção, a gênese de um texto é um trabalho de auto-hipertextualidade.(GENETTE, idem, p.40)


Inicialmente, Genette analisa os gêneros oficialmente considerados hipertextuais: paródia, travestimento e pastiche. Genette considera o termo paródia “é um lugar de grande confusão, porque a usamos para designar ora deformação lúdica, ora transposição burlesca de um texto, ora a imitação satírica de um texto. que a confusão a definição do termo paródia”. Tal confusão se estabelece pelo caráter funcional das três formas que é o efeito cômico. No entanto, “essa convergência funcional mascara uma diferença estrutural importante entre os estatutos transtextuais: a paródia estrita e o travestimento procedem por transformação de texto, o pastiche satírico (como todo pastiche), por imitação de estilo” (GENETTE, idem, p.20).   
Como forma de desfazer essa confusão o teórico propõe rebatizar os termos: paródia – o desvio de texto pela transformação simples; o travestimento – a transformação estilística com função degradante (charge) e o pastiche – a imitação de um estilo desprovida de função satírica. Existe ainda uma terceira categorização funcional dos hipertextos a qual Genette chamará de sério. O teórico observa que dentro do gênero sério é possível estabelecer uma divisão entre os textos que atendem uma demanda social e os que são de ordem prática. Batizado de transposição essa é a prática hipertextual mais importante segundo a visão do autor. A transposição pode ocorrer por muitos processos dentre eles destaca-se a tradução.
O objetivo de Genette não é classificar exaustivamente as categorias funcionais e estruturais do hipertexto, mas salientar sua importância e presença dentro da literatura. 

        Mas o prazer do hipertexto é também um jogo. A porosidade das divisões entre os regimes deve-se, sobretudo, à força de contágio, neste aspecto da produção literária, do regime lúdico [...] esta contaminação constitui uma grande parte de seu valor. (GENETTE, idem, p.46)


terça-feira, 10 de maio de 2011

INTERAÇÃO E LINGUAGEM



Entrevista com Jean-Paul Bronckart


Entrevistadora: Anna Rachel Machado
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP




Esta entrevista com Jean-Paul Bronckart foi conduzida durante a organização do XIV INPLA, realizado pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem na PUC de São Paulo, no qual o Prof. Bronckart atuou como conferencista da sessão inaugural e como debatedor de simpósio. Na entrevista, o autor nos mostra a trajetória de seus estudos e pesquisas, apresentando as razões que o levaram a se voltar para as questões do trabalho, assume suas fontes de referência centrais e a posição de sua teoria em relação às outras disciplinas das Ciências Humanas, relata o desenvolvimento de suas relações com os pesquisadores brasileiros, apresenta o desenvolvimento de seu pensamento, apontando para a necessidade de modificações em alguns aspectos da teoria apresentada em 1997 e discute sua posição em relação à dicotomia ciências básicas/ciências aplicadas.



Introdução

O interacionismo sócio-discursivo sofreu uma crescente divulgação no Brasil nos últimos dez anos, para o que muito contribuiu o Acordo Interinstitucional estabelecido entre a Universidade de Genebra (UNIGE) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Graças a esse acordo, um diálogo contínuo estabeleceu-se entre pesquisadores da Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UNIGE e do Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUC/SP. Dentre esses pesquisadores, os contatos mais contínuos tem sido feitos entre os professores Dr. Jean-Paul Bronckart – que coordenava o grupo de Genebra até mais ou menos 1998 –, Dr. Bernard Schneuwly, Prof. Dr. Joaquim Dolz, Profª. Dra. Janette Friedrich, Profª., Drª. Glaís Sales Cordeiro, Drª. Itziar Plazaola-Giger, do lado suíço; e as professoras Drª. Roxane Rojo, Drª. Maria Cecília Camargo Magalhães e Drª. Fernanda Liberali, além de mim mesma, Anna Rachel Machado, do lado brasileiro.
O diálogo estabelecido entre esses pesquisadores traduziu-se em inúmeras pesquisas, veiculadas continuamente em cursos, eventos científicos, assessorias (Rangel et al., 2001), processos de formação de professores (Magalhães, 1999), dissertações, teses, artigos, livros (Machado, 1998; Rojo, 2000; Dionisio, Machado e Bezerra, 2002; de Souza, 2003) e materiais didáticos (Machado, 2000 e 2004; Cristovão et al., 1998; Barbosa, 2001; Liberali et al., 2002). Mesmo com diferenças teórico-metodológicas visíveis entre si, os pesquisadores brasileiros citados guardam um traço em comum: a perspectiva de intervenção na educação, imediata ou prospectivamente. Em geral, suas pesquisas voltam-se para a atividade de ensino e aprendizagem da língua portuguesa, ou do francês e inglês como línguas estrangeiras, para a atividade de formação de professores e, mais recentemente, para a análise do ensino como trabalho. Todos esses trabalhos têm trazido conclusões e questionamentos que nos têm levado a desenvolver uma contínua reflexão sobre o interacionismo sócio-discursivo, ao mesmo tempo em que sua divulgação – seja da vertente "mais teórica" ou "mais didática" – tem multiplicado interpretações sobre seus conceitos de base e sobre o modelo de análise de textos proposto, que foi sintetizado na obra de Bronckart (1997), por nós traduzida para o português em 1999 (Bronckart, 1999).
Assim, durante o planejamento das atividades do XIV INPLA, propusemo-nos a organizar um simpósio sob o título "Painel de pesquisas brasileiras e portuguesas no quadro do interacionismo sócio-discursivo: aportes teóricos e metodológicos e novas tendências" (Machado & Pinto, 2004), com o objetivo de propiciar um espaço de discussão de questões teóricas e metodológicas que têm emergido dos diferentes tipos de pesquisas que tomam o quadro teórico do interacionismo sócio-discursivo, na linha de pesquisa Linguagem e Educação, na de Linguagem e Trabalho e na de Linguagem e Novas Tecnologias e para também efetuar um levantamento das contribuições desse quadro teórico para a Lingüística Aplicada brasileira na última década. Tendo convidado o Prof. Dr. Jean-Paul Bronckart para exercer a função de debatedor desse simpósio, a Comissão Organizadora desse congresso logo se interessou também em convidá-lo para a conferência inaugural, sob o título "Restrições e liberdades textuais, inserção social e cidadania" (Bronckart, 2004). Decidimos então realizar uma entrevista com o Prof. Bronckart, com o intuito de apresentá-lo aos participantes do XIV INPLA que ainda não o conheciam e para elucidar suas filiações teóricas, conhecer melhor a trajetória de seu pensamento e do grupo que muito por tempo coordenou, assim como para tomar conhecimento de suas reflexões mais recentes. É o resultado completo dessa entrevista que apresentamos aos leitores da revista D.E.L.T.A..
A.R. – Quais são os fatos mais importantes que marcaram sua formação? Quais foram os autores/professores/movimentos que mais o influenciaram quando jovem?
J-PB – Minha formação inicial desenvolveu-se em duas etapas. De 1964 a 1969, na Universidade de Liège (Bélgica), me graduei em psicologia experimental e em psicologia da linguagem. De 1969 a 1974, na Universidade de Genebra, fiz estudos para a licenciatura em psicologia do desenvolvimento e depois desenvolvi uma tese de doutorado em psicolingüística do desenvolvimento. Durante esse período de formação, tive o apoio personalizado de dois professores que exerceram influência decisiva em meu percurso.
Em Liège, tive o privilégio de ter sido muito rapidamente integrado ao laboratório do professor Marc Richelle. Psicólogo generalista de inspiração skineriana, Richelle nos formou no rigor do método experimental e do raciocínio científico, ao mesmo tempo em que nos fazia ficar sempre interessados em conhecer outros paradigmas diferentes do behaviorismo: por exemplo, foi em seu laboratório que foram dados os primeiros cursos em francês sobre a teoria de Vygotsky e os primeiros cursos sobre a "Gramática gerativa" de Chomsky. Embora Richelle fosse adepto fiel do behaviorismo, ele deixava-nos completamente livres para fazermos nossas próprias opções. Do meu lado, aderi imediatamente e quase que espontaneamente à abordagem interacionista de Vygotsky, buscando combiná-la com alguns aspectos do behaviorismo metodológico. Na verdade, de forma global, continuei sempre fiel a essa orientação, como mostra, por exemplo, o artigo "Du behaviorisme à l'interactionnisme social", que publiquei em obra de homenagem a Marc Richelle (cf. 1995).
Mais tarde, logo que cheguei a Genebra, comecei a trabalhar no Departamento de Psicolingüística, que acabara de ser criado por Hermina Sinclair. Formada em lingüística histórica e comparada e aderindo depois à abordagem chomskiana e, sobretudo, ao construtivismo piagetiano, Sinclair, assim como Marc Richelle, tinha uma admirável abertura de espírito: todas as manhãs, das 7h30 às 9h30, ela dirigia um seminário informal em que eram discutidas leituras recentes, problemáticas teóricas, questões de metodologia etc. Esses seminários, dos quais participavam, dentre outros, Emilia Ferrero, Annette Karmiloff e Ioanna Berthoud, se constituíram como momentos de intensa formação para mim. Sinclair também orientou minha tese de doutorado, na qual tratei dos valores (temporais e/ou aspectuais) que as crianças de fato atribuem aos tempos verbais, no quadro de produções de enunciados em situação experimental. Já então, Sinclair aceitou que, no quadro desse trabalho, eu tomasse uma posição bastante crítica em relação à opção chomskiana e à piagetiana.
Em minhas escolhas pessoais, a primeira corrente teórica à qual aderi foi a que, naquela época, era conhecida como "psicologia soviética": meu trabalho de conclusão de curso foi inspirado nos trabalhos de Luria (para uma síntese, cf. Bronckart, 1971) e, através de Luria e de Leontiev (e dos cursos de Marc Richelle), fui progressivamente tomando consciência da importância da obra de Vygotsky. Vygotsky levou-me a Marx e a Spinoza e, desse modo, esses três autores (ou esse triunvirato) passaram a ser minhas referências centrais, continuando a sê-lo até hoje.

Entrevista
ARM: – Como se desenvolveu sua vida profissional na Universidade de Genebra? Quais foram as pesquisas mais importantes desenvolvidas? Com quais autores?
J-PB: – Posso considerar que minha vida profissional em Genebra desenvolveu-se em três etapas principais (atualmente, uma quarta etapa está se iniciando e será enfocada mais abaixo, em outra resposta). A primeira dessas etapas desenvolveu-se na Seção de Psicologia, de 1969 a 1976, apresentando três aspectos principais:
– Primeiro, o desenvolvimento de pesquisas em psicolingüística sob a orientação de Sinclair: minha pesquisa para a tese de doutorado sobre os tempos verbais (cf. Bronckart, 1976; Bronckart & Sinclair, 1973) e pesquisas sobre as estratégias de compreensão da ordem das palavras (cf. Sinclair & Bronckart, 1972) e sobre o papel que a linguagem exerce na regulação do comportamento motor (cf. Bronckart, 1973).
– A seguir, uma participação ativa, durante seis anos, nos trabalhos do Centro Internacional de Epistemologia Genética (CIEG), de Jean Piaget. Nesse quadro, especializei-me sobretudo na psicologia piagetiana, conduzindo diversas pesquisas experimentais (cf. Bronckart, 1974; Bronckart & Cattin, 1974; Bronckart & Rappe du Cher, 1977; Bronckart & Karmilof-Smith, 1978) e assistindo a debates profundos que eram realizados todas as semanas, nos quais intervinham, além do próprio Piaget, inúmeros cientistas, como L. Apostel, F. Bresson, P. Gréco, J. -B. Grize, F. Halwachts, B. Inhelder, J. Ladrière, S. Papert, A. Szeminska, R. Thom, além de muitos outros. Junto a outros contestadores, eu tinha, no CIEG, a reputação de ser mais vygotskiano que piagetiano, mas o próprio Piaget aceitava essa situação (que, logicamente, não podia incomodá-lo muito) e ele mesmo pediu-me para dirigir, a seu lado, um imenso volume da "Encyclopédie de la Pléïade" consagrado à psicologia (cf. Piaget, Mounoud & Bronckart, 1987). Esse trabalho só terminou bem depois da morte de Piaget, mas deu-me o privilégio de estar em contato muito estreito com esse extraordinário pensador durante os últimos anos de sua vida.
O último aspecto dessa primeira etapa de minha vida profissional na Universidade de Genebra configurou-se como uma busca pessoal de formação intensiva no campo da lingüística. Essa formação já havia começado em Liège, com um curso de iniciação à Gramática gerativa, prosseguindo em Genebra com o aprofundamento técnico nos métodos dessa teoria e também com um estudo aprofundado da semiologia, da teoria saussureana, da gramática estrutural, das teorias da enunciação de Benveniste e Culioli etc., o que acabou gerando a publicação de um manual de iniciação à lingüística (cf. Bronckart, 1977).
A segunda etapa de minha vida profissional desenvolveu-se de 1976 ao começo dos anos 80 e pode ser chamada de fase de transição... e de hesitações. Tendo manifestado interesse pela exploração pedagógica dos resultados das pesquisas em psicolingüística, a direção da Seção das Ciências da Educação convidou-me para conduzir, desde 1973, um curso de «psicopedagogia das línguas» e, em 1976, fui contratado como professor para esse campo de estudos. Esse período também foi marcado por um engajamento político e administrativo forte: desde 1978, com 32 anos, fui eleito presidente da Seção das Ciências da Educação, função que exerci por cinco anos, o que me permitiu implementar, ao lado de alguns colegas, uma reestruturação completa e um desenvolvimento significativo dessa seção. No plano científico, procurei, ainda com uma lógica «aplicacionista», explorar os resultados das pesquisas psicolingüísticas em prol da reforma dos programas e dos métodos de ensino do francês (cf. Bronckart, 1979; 1980). Essa tentativa foi um fracasso brutal e me fez compreender que as questões de formação em língua deveriam ser abordadas em outra perspectiva lingüística (não mais frasal, mas textual) e com outra concepção das relações entre as ciências da educação e as disciplinas de referência, representadas pela lingüística e pela psicologia, o que marcou a passagem de uma lógica psico-pedagógica a uma abordagem de « didática » das disciplinas escolares. Entretanto, antes de tentar desenvolver essa nova abordagem, dediquei-me a finalizar meu trabalho como psicolingüista, publicando diversas sínteses dos resultados a que tinha chegado em minhas pesquisas nessa área (cf. Bronckart, Gennari & de Weck, 1981; Bronckart, Kail & Noizet, 1983).
A terceira etapa de minha vida profissional em Genebra, de 1980 até mais ou menos 1998, foi a do desenvolvimento da Unidade de Didática das Línguas, com a colaboração ativa de Daniel Bain, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, Itziar Plazaola e de muitos outros professores-pesquisadores. Os trabalhos realizados por esse grupo podem ser divididos em quatro categorias principais:
– Primeiro, um amplo trabalho teórico e empírico, que teve por objetivo fornecer-nos um modelo coerente da estrutura e do funcionamento dos textos/discursos do francês contemporâneo. Com base na análise de milhares de trechos de textos, esse trabalho levou-nos à elaboração de uma grade de analise que permite detectar e quantificar as unidades e estruturas próprias aos tipos de textos, e a um primeiro modelo da estrutura dos textos, publicado em Bronckart et al. (1985). Esse tipo de pesquisa prosseguiu com um trabalho comparativo, com a aplicação do mesmo método de análise a outras línguas (alemão, basco, catalão, castelhano, italiano e português, por exemplo). Posteriormente, o modelo foi objeto de uma substancial formulação na obra "Activités langagières, textes et discours" (1997), traduzida por Anna Rachel Machado para o português (1999).
– A seguir, esses mesmos procedimentos serviram de referência de base para um conjunto de pesquisas sobre as "condições de aquisição dos principais domínios da organização" dos textos (tempos verbais, organizadores textuais, procedimentos de modelização etc.) por crianças ou alunos entre oito e treze anos. As pesquisas desse tipo foram essencialmente desenvolvidas em teses de doutorado por mim orientadas e que também apresentam uma dimensão comparativa (em particular, com o estudo do basco, do catalão, do espanhol e do italiano).
– A terceira categoria de trabalhos desenvolvidos nessa etapa foram trabalhos referentes à "didática das línguas". Nesse domínio, em colaboração com professores do nível primário (do 3º. ao 6º ano) e do secundário inferior (do 7º ao 9º ano), contribuímos para a reforma dos programas de ensino de línguas da Suíça francofone (com uma nova abordagem da gramática e, sobretudo, com uma nova concepção do ensino de textos narrativos, argumentativos e informativos). Além disso, elaboramos dois tipos de instrumentos de ensino: manuais destinados ao ensino do francês para o 7º, 8º e 9º ano, adotados e utilizados em diversos cantões da Suíça francofone (cf., por exemplo, Besson, Bronckart et al., 1990), e "seqüências didáticas", isto é, atividades-tipos estruturadas e centradas na maestria de um domínio específico do funcionamento da língua (cf. Dolz & Schneuwly, 1998). Paralelamente, nesses anos, dirigi uma unidade de pesquisa e de intervenção no domínio da didática do esporte (cf. Bronckart, Brechbuhl & Joanisse, 1985).
– A terceira categoria de trabalhos foram trabalhos mais teóricos, enfocando a epistemologia das ciências humanas (cf. Bronckart et al., 1996; Bronckart, 2002b), as conseqüências a serem tiradas da teoria saussureana do signo (cf. Bronckart, 2002a e 2003) e as teorias da ação (cf. Bronckart, 2001).
ARM – Suas pesquisas estiveram durante muito tempo ligadas às questões educacionais e, recentemente, voltaram-se para as questões de trabalho. O que motivou esse novo interesse?
J-PB – Essa mudança corresponde, de fato, a uma nova fase de meu trabalho (a quarta, considerando-se minha resposta anterior), mas pode-se considerar que é uma seqüência "natural" dos trabalhos anteriores. Quatro fatores principais podem explicar essa evolução:
– Nossos trabalhos sobre os textos tinham nos levado a considerar que eles são os "correspondentes empíricos" (em uma determinada língua) de uma atividade ou de uma ação linguageira. Assim, era natural que, conseqüentemente, começássemos a levantar questões sobre o estatuto, a definição e as condições de descrição do agir humano.
– Devido à minha ancoragem na filosofia de Spinoza e no marxismo, pareceu-me importante abordar essa questão do agir, considerando sua "historicidade", ou sob o ângulo daquilo que é sua manifestação mais determinante no tipo de sociedade em que vivemos, isto é, sob o ângulo do trabalho.
– Os trabalhos que desenvolvemos em didática das línguas inscreviam-se em um projeto de modernização e de "racionalização" dos projetos e dos métodos de ensino (cf. acima: reforma dos programas e criação de novos meios de ensino). Entretanto, como em outras didáticas das disciplinas (principalmente na didática das matemáticas), pareceu-nos necessário desenvolver pesquisas para avaliar os efeitos dos novos programas e dos novos métodos (em que medida eles trazem uma real melhoria do ensino e das aprendizagens?). Esse controle ou essa avaliação exigiam que fosse analisado o desenvolvimento efetivo das aulas. Para isso, foram realizadas pesquisas desse tipo, que, além de trazerem respostas às nossas questões iniciais, também mostraram a importância e a dificuldade do trabalho dos professores e suscitaram questões sobre a própria natureza desse trabalho.
– Enfim, devido a razões mais locais, parte da antiga Unidade de Didática das Línguas (parte à qual pertenço) decidiu integrar-se ao departamento de formação de adultos e, com essa integração, foi possível encontrar vários colegas que trabalham no domínio da ergonomia ou da análise do trabalho.
Tudo isso nos abriu espaço para a constituição de um subgrupo da Unidade de Didática das Línguas, denominado grupo "Langage, Action, Formation" (LAF), constituído por dez pesquisadores, que elaborou um amplo programa de pesquisa sobre "a análise das ações e dos discursos em situação de trabalho", sobre o qual não poderei discorrer suficientemente aqui (mais informações podem ser encontradas em nosso site da WEB, indicado abaixo).
ARM – Como se devolveram seus contatos com os pesquisadores brasileiros?
J-PB – Os primeiros contatos ocorreram em 1992, em Madri, durante o 1º. Congresso da Sociedade Internacional para a Pesquisa Sociocultural. Nessa ocasião, conheci Roxane Rojo e Maria Cecília C. Magalhães, do LAEL da PUC de São Paulo, e, pelas nossas exposições, constatamos que havia um forte parentesco entre nossas orientações: resumidamente, havia a focalização na linguagem e nos problemas de ensino de línguas e tínhamos como nossos autores de referência mais importantes, por um lado, Vygotsky e a escola soviética, no campo do desenvolvimento e Bakhtin, no campo da análise do discurso. Decidimos então estabelecer uma colaboração e a essa "decisão" se seguiram rápidos efeitos: intercâmbios entre professores e pesquisadores ocorreram desde o ano de 1993 e, em 1994, foi assinado um acordo de cooperação entre o LAEL e nossa unidade de didática, acordo esse que continua em vigor até hoje. Nesse quadro, co-orientei as teses de Anna Rachel Machado e de Glaís Sales Cordeiro (que trabalha atualmente em nossa unidade) e desenvolveram-se pesquisas coordenadas que resultaram na publicação, em 1999, de um número da revista "Pratiques et Théories", intitulada "Pratiques langagières et didactique des langues".
Além disso, também temos contatos (menos formais e menos regulares) com pesquisadores em lingüística da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte), com pesquisadores de psicologia e ciências da educação da UNICAMP e da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Vitória – Espírito Santo, na qual uma de nossas ex-doutorandas (Edivanda Mugrabi) atua atualmente como professora, desenvolvendo pesquisas sobre alfabetização.
ARM – Quais são as relações que sua equipe de trabalho tem com o Grupo ALTER do Programa do LAEL (PUC/SP) e com o projeto de pesquisa desse grupo?
J-PB – Principalmente pelo fato de que Anna Rachel Machado passou aproximadamente dois anos junto a nossa equipe em Genebra (e de que tem regularmente retornado) e também pelo fato de que ela também traduziu (brilhantemente) meu último livro para o português, tem sido sobretudo com essa pesquisadora do LAEL que temos desenvolvido uma colaboração de trabalho mais estreita. E, de um modo muito curioso e interessante, enquanto a evolução interna do LAEL e outras razões que Anna Rachel pode explicar bem melhor que eu levaram-na a constituir o Grupo ALTER, voltado para a análise das relações entre linguagem e trabalho educacional, a evolução interna da Unidade de Didática das Línguas de Genebra levou-nos, pelas razões acima mencionadas (cf. 3), a abordar a problemática da análise do trabalho em geral, dentre os quais, o trabalho dos professores. Considerando essa nova comunidade de interesses, estabelecemos uma segunda forma oficial de colaboração, a participação do Grupo ALTER no projeto de pesquisa do Grupo LAF, sobre o qual falamos acima (cf. 3). Operamos com os mesmos sistemas conceituais e com as mesmas metodologias, com a análise de seqüências de ensino, assim como com a análise de diferentes tipos de textos produzidos em relação a essas mesmas seqüências de trabalho (textos institucionais, entrevistas com os atores etc.). Um "corpus" considerável de dados já foi coletado e, embora o essencial desses dados ainda esteja por ser analisado e interpretado, esse trabalho já nos deu a oportunidade de produzir diversos artigos em co-autoria, que deverão ser publicados ainda neste ano (cf. Bronckart & Machado, no prelo; Machado & Bronckart, no prelo), prevendo-se, evidentemente, que essa colaboração prossiga no decorrer dos próximos anos.
ARM – Em seus trabalhos, você aborda questões de ordem filosófica, psicológica, lingüística e didática sobretudo. Em que disciplina seria adequado enquadrá-los ? Qual (is) é (são) a(s) questões central(is) que subjazem a esse trabalho ?
J-PB – Para responder resumidamente à primeira parte da questão, posso dizer que, por princípio, nosso trabalho não se inscreve em nenhuma dessas disciplinas em particular ou, se preferirmos, inscreve-se em cada uma delas! Essa posição decorre, em primeiro lugar, do fato de que contesto radicalmente os princípios do positivismo e principalmente a divisão/recorte que esses princípios produziram nas ciências sociais/humanas (antropologia, economia, sociologia, etnologia, lingüística, psicologia, ciência da educação etc.). Essa posição decorre também de três princípios formulados pelos fundadores do interacionismo social no começo do século XX:
– de um princípio de Mead, segundo o qual o desenvolvimento do social (a elaboração dos fatos sociais e os mecanismos de socialização) e o desenvolvimento psicológico das pessoas são duas facetas de um único e mesmo processo;
– e de dois princípios de Vygotsky: o princípio de que não se pode trabalhar seriamente em ciências humanas sem clarificar sua posição epistemológica e seu questionamento, o que implica levar em consideração a parte do "corpus" filosófico que se centra nas questões do espírito, do social e da ação; e, em segundo lugar, o princípio de que a atividade prática é um objeto central de qualquer ciência do humano e que, conseqüentemente, essa ciência deve buscar teorizar as práticas, ao mesmo tempo em que intervém nessas práticas (em particular, no quadro da educação e da formação).
Além disso, considero que, como sustentava Saussure e como sustentam muitos pesquisadores até hoje, a atividade linguageira é um aspecto fundamental de toda prática social ou individual.
Conseqüentemente, posso dizer que me situo na ciência do humano, considerando que ela deve tratar, ao mesmo tempo, dos aspectos sociais, linguageiros, psicológicos e educacionais. Respondendo a segunda parte da questão, posso dizer que nosso trabalho está articulado a uma questão geral – quais são os processos que operaram no desenvolvimento (histórico) humano? – , questão essa que pode ser decomposta em várias subquestões:
– Como caracterizar as propriedades universais das atividades linguageiras (enquanto textos e discursos produzidos no quadro de uma língua natural)?
– Que papel desempenha a maestria dessas atividades linguageiras nas formas de elaboração dos conhecimentos (tipos de raciocínio) e na formação de unidades de ação?
– Como os processos linguageiros mencionados podem gerar regras e normas que se cristalizam em instituições sociais e podem dar origem ao pensamento consciente humano?
– Em que e em quais condições, a atividade de trabalho e sua análise podem contribuir para o desenvolvimento e a formação das pessoas que trabalham?
ARM – Como você vê a relação de seu pensamento com o pensamento bakhtiniano ?
J-PB – Como quase todos os pesquisadores envolvidos com a análise de discurso, a descoberta do pensamento de Bakhtin foi muito importante para mim por quatro razões principais: pela ênfase que ele dá à diversidade das produções linguageiras, relacionando-as claramente à diversidade das atividades humanas; por sua perspectiva geral, que coloca a análise lingüística a serviço de problemáticas mais gerais (ao estatuto da literatura, da conversação etc.), por sua abordagem original e fundadora do estatuto dos gêneros de textos/discursos, pela introdução e desenvolvimento dos temas do dialogismo, do polilingüismo, da intertextualidade etc.
Isso posto, posso dizer ainda que, depois da recente clarificação do estatuto das obras do Círculo de Bakhtin e a atribuição definitiva a Voloshínov da paternidade exclusiva da obra "A estrutura do enunciado" e sobretudo de "Marxismo e filosofia da linguagem", meu interesse pela obra particular de Bakhtin diminuiu. Confesso preferir a abordagem de Voloshínov (como também a de Medvedev e, mais ainda, a de Jakubinski), cujo programa de trabalho e cuja orientação geral inspiraram profundamente a teoria que busco desenvolver (cf. Bronckart, 2002c).
ARM – Seu trabalho mais conhecido no Brasil é o livro « Atividades de linguagem, textos e discursos», publicado originalmente em 1997. De lá para cá, houve alguma modificação importante em seu pensamento? Ha alguma coisa nesse livro que você modificaria agora?
J-PB – Na verdade, esse livro busca atingir dois objetivos que se inter-relacionam, mas que são diferentes: por um lado, buscamos propor uma versão nova da arquitetura textual e das operações (psico-linguageiras) que subjazem aos diferentes componentes dessa arquitetura; por outro, no capítulo 1, buscamos propor o quadro, os conceitos e os questionamentos de nossa teoria sobre o desenvolvimento humano, a teoria do "interacionismo sócio-discursivo").
Em relação ao plano da estrutura geral de nosso modelo e da análise das distribuições de unidades e de estruturas lingüísticas, não há modificações importantes. Mas há duas necessidades de aprofundamento ou de complementação desse modelo. A primeira já veio apontada no próprio livro: o modelo não mostra com evidência suficiente as relações existentes entre a construção dos mundos discursivos (bases dos tipos de discurso) e as operações de responsibilização enunciativa. A segunda necessidade tem a ver com o caráter estático da definição e da análise das situações de produção textual: de fato, tal como se apresentam no livro, não consideramos de modo suficiente a dinâmica e a temporalidade dessa produção e as transformações de situação que podem se produzir durante o próprio decorrer da ação. Portanto, nesses dois casos, modificações/reconceitualizações significativas devem ser introduzidas, mas elas só poderão desenvolver-se com base nos resultados empíricos das pesquisas que atualmente se encontram em curso.
Além disso, nessa obra, adotamos essencialmente as concepções de ação oriundas da filosofia analítica, de Habermas e de Ricoeur. Nosso trabalho atual leva-nos a contestar a pertinência da primeira e a atenuar nossa adesão às duas outras. Para dar conta da dinâmica da ação, buscamos integrar a nosso modelo as abordagens da sociologia compreensiva de Simmel e de Schütz e a teoria do "poder de ação", que Giddens desenvolve atualmente.
No plano mais geral de nossa teoria do desenvolvimento, também se processaram modificações, particularmente sobre o conceito de ação (que definimos como uma unidade de funcionamento individual, em oposição à atividade como unidade de funcionamento coletivo).
ARM – O que pensa da Lingüistica Aplicada tal como se desenvolve no Brasil? Como você vê a validade das pesquisas teóricas e das pesquisas práticas ou intervencionistas?
J-PB – Subjacente à questão dos termos adotados (e da oposição didática/lingüística aplicada), temos aí uma questão verdadeiramente importante, que é a da concepção das relações entre disciplinas e/ou pesquisas ditas básicas e as disciplinas, pesquisas ou campos ditos de aplicação. Para mim, essa diferença deve ser rejeitada por várias razões que já abordei4: por exemplo, a psicologia do desenvolvimento é considerada como uma disciplina básica, mas, a meu ver, seus trabalhos não têm nenhuma pertinência, se não integram dados de ordem educativa e didática (porque, em nossas sociedades, a educação é um dos espaços principais de desenvolvimento humano); e, em sentido inverso, as disciplinas ditas de campo (como a didática das línguas) não têm nenhuma pertinência, se não se baseiam em um domínio real das teorias de referência (no caso, das teorias lingüísticas). Um outro modo de dizer o que penso sobre isso é afirmar, para mim, todos os trabalhos das ciências humanas (da lingüística formal à análise do trabalho, passando pela psicologia cognitiva etc.) têm o mesmo estatuto, porque se confrontam com a mesma realidade: suas elaborações conceituais só podem ser validadas, "in ultimo", pela volta aos dados empíricos; e esses dados são sempre fatos de campo ou fatos práticos.
Uma vez esclarecida essa questão de fundo, a questão dos rótulos torna-se secundária. Pessoalmente, prefiro o rótulo «didática das línguas » em vez de « lingüística aplicada », já que, pelo que afirmei antes, não penso que se possa ou se deva « aplicar » a lingüística (e qual?) à educação. Mas o rótulo « didática » também traz problemas e pode ser fonte de confusão. Além disso, sabemos que a escolha desses rótulos pode depender também de problemas político-institucionais, sendo a lingüística aplicada reivindicada sobretudo pelas faculdades de letras e a didática, pelas faculdades da educação. Em suma, resumindo, o rótulo me importa pouco, me importa o que é realmente feito e a epistemologia que alimenta o trabalho de pesquisa. Como exemplo concreto, embora o LAEL seja uma unidade de lingüística aplicada, enquanto nosso grupo pertence a uma unidade de didática das línguas, o modo de pensar e de desenvolver as pesquisas nas duas unidades é globalmente o mesmo, sendo que, durante os dez anos em que temos trabalhado juntos, essas diferenças de rótulos nunca nos causaram o menor problema.

Fragmento de texto publicado na revista DELTA ( Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada). Leia o artigo completo em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44502004000200006&script=sci_arttext

 

quarta-feira, 4 de maio de 2011

AS IDEIAS LINGUÍSTICAS DO CÍRCULO DE BAKHTIN

Síntese da leitura do capítulo II Criação Ideológica e Dialogismo.
In: FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Edições Criar, 2003. 

                                                                                                                                                               
O chamado Círculo de Bakhtin, grupo multidisciplinar formado por profissionais de diversas áreas, buscou contribuir para a construção de uma teoria de base marxista da criação ideológica. Dentro do grupo de pesquisadores destacam-se Voloshinov e Medvedev. Voloshinov dedicou-se à linguagem em basicamente dois pontos: uma discussão crítica dos estudos linguísticos de seu tempo, em especial na obra [1]Marxismo e filosofia da linguagem, e a apresentação da tese de que os enunciados artísticos e os enunciados do cotidiano possuem um chão comum O discurso na vida e o discurso na poesia e As fronteiras entre poética e linguística. Medvedev, por sua vez, direcionou seu olhar para a literatura, partindo de uma crítica minuciosa das idéias dos formalistas O método formal nos estudos literários.
Para que se possa compreender o desenvolvimento das teorias do Circulo de Bakhtin é fundamental que se observe a utilização do termo “ideologia”. Para os teóricos o termo “ideologia” é utilizado em geral para designar toda a produção humana como, por exemplo, a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais. Os termos ideologia, ideologias e ideológico não têm, portanto, na visão do Círculo de Bakhtin, nenhum sentido pejorativo como observamos comumente em algumas vertentes marxistas. O termo “ideológico” está ligado à percepção de que todo enunciado está emitindo uma posição de valoração ou avaliação. A tentativa de neutralidade já é por si só uma expressão valorativa.
Outra definição importante a ser considerada é a concepção de signo como produto das relações sociais. A manifestação ideológica é realizada pelos signos. Voloshinov, em Marxismo e filosofia da linguagem, conclui que “sem signos não existe ideologia” (p.9). Nossa visão da realidade é perpassada pelos signos que através de processos semióticos mediam nosso entendimento da realidade. A compreensão da relação entre ideologia e semiótica, estabelecida pelo Circulo, fundamentaliza a construção de sua teoria materialista para o estudo da produção humana, o fundamento da filosofia da cultura. Nossa visão da realidade é perpassada pelos signos que através de processos semióticos mediam nosso entendimento da realidade. Bakhtin, em O discurso no romance, afirma que: A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente; nossas palavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos sociais que recobrem as coisas. Essa palavra/ coisas, diz este autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilidades socioverbais que conceitualizam as coisas (p.277).
Um signo reflete e refrata o mundo, simultaneamente. Quando refletimos uma realidade exterior o fazemos de forma refratada, ou seja, não apenas descrevemos o mundo, mas o reconstruímos através da escolha dos signos que utilizaremos para sustentar nosso discurso. O material semiótico pode ser o mesmo, mas sua significação no ato social concreto de enunciação, dependendo da voz social em que está ancorado, será diferente. Isso faz da semiose humana uma realidade aberta e infinita (FARACO. p.51). Bakhtin nos apresenta a refração como um emaranhado de milhares de fios dialógicos tecidos pela consciência socioideológica em torno de cada objeto (FARACO, p. 54).  
Faraco resume que para Medvedev toda a produção ideológica é constituída por três “elementos”: o material – parte concreta e totalmente objetiva da realidade, o histórico – pode ser reduzido a processos fisiológicos e psicológicos de indivíduos isolados e sociolinguístico – se corporifica em signos, emergindo e significando nos complexos processos do intercâmbio social. Bakhtin, em O discurso no romance, apresenta uma percepção de linguagem como uma realidade axiologicamente saturada, um fenômeno sempre estratificado.
Heteroglossia dialogizada caracteriza a dinamicidade semiótica presente nos enunciados que permeiam a sociedade. Para Bakhtin, o foco não está nas variações de vozes, mas na interação delas. O plurilinguismo dialogizado nome dado as fronteiras existentes entre as vozes é o espaço do enunciado, as relações estabelecidas entre as vozes reformulam os enunciados e formam novas vozes. Toda a enunciação é uma resposta ao que já foi dito, sendo assim, pode afirmar, refratar, criticar, etc. formando uma espécie de diálogo. O dialogismo é apresentado em três dimensões: todo dizer não pode deixar de se orientar para o “já dito”, - todo dizer é orientado para a resposta, – todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de inúmeras vozes.
O termo “polifonia” também necessita ser considerado como um espaço onde coexistem várias vozes equipolentes. Ao observar o carnaval, Bakhtin reconhece um poderoso instrumento contra qualquer monologização da existência humana; é ele que materializa a força cultural do riso: dessacraliza os discursos oficiais, subverte a ordem hierárquica.  Para o teórico o riso e o plurilinguismo são responsáveis pela descentralização e relativização da consciência humana e o romance é no romance que ele encontra sua expressão.    
 O ser humano constitui-se como sujeito por meio da linguagem. Um molho bem condimentado parece ser uma alegoria possível para a visão bakhtiniana da linguagem. Nada mergulhado em um molho temperado assimilará o sabor de apenas um condimento, da mesma forma nenhum sujeito absorve uma só voz social após ser submergido na linguagem.      


[1] A autoria da obra Marxismo e filosofia da linguagem é controversa, para alguns o texto é atribuído a Mikael Bakhtin. Faraco entende que por terem sido colegas de pesquisa durante tantos a confusão gerada em torno de suas produções seja justificável. Faraco assume para seus estudos que apenas as obras assumidamente Bakhtinianas serão atribuídas a M. Bakhtin.

O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO


 
In:FREUD, Sigmund (1930). Obras Completas de Sigmund Freud. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980, Vol. XI p. 81-127.


                                                                                                                                          

Em “O mal-estar na civilização”, Freud, apresenta questões das mais variadas ordens: religiosas, comportamentais e sociais que tornam a vida do homem civilizado cada vez mais complexa, dificultando o tão sonhado desfecho: “Viveram felizes para sempre.” Ao questionar os padrões avaliativos dos homens o autor alega que comumente o ser civilizado valoriza fatores como poder, sucesso e riqueza, deixando de lado o que realmente é importante na vida. Sobre sua conclusão o autor reflete:
“No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim” (FREUD, 1980. P.81).
“O que define o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer.” (FREUD, 1980. P.94)
“Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas. Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição” (FREUD, 1980. P.95).
Estaria o homem civilizado fadado a fugir do sofrimento por ser obrigado a reprimir suas pulsões e impulsos primitivos para satisfazer a estrutura social em que se insere?
Quanto à necessidade religiosa no homem, Freud acredita que esteja ligada a uma fase primitiva do sentimento do ego.
“A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil” (FREUD, 1980. P.90).
“As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É necessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal” (FREUD, 1980. P.100).

Considerando o comportamento religioso como sendo a manifestação da necessidade infantilizada do homem de ser protegido e Deus como representação de um pai benevolente e atento às necessidades de seus filhos, podemos dizer que o mesmo pai que ampara e protege é também aquele que cerceia, reprime e pune?