No último semestre do curso de Letras, fui desafiada a relembrar meu “histórico literário”. Mergulhando em memórias, não foi difícil recordar o episódio literário mais famoso de minha vida, pois rende muita risada nas reuniões familiares até hoje. Muito antes de aprender a ler, em uma época onde Google e Internet não existiam, as pesquisas dependiam exclusivamente de livros. Era comum as famílias da década de 1980 comprarem enciclopédias e almanaques, nada baratos, para auxiliar nas pesquisas escolares de suas crianças. Minha mãe, já mãe de duas meninas e grávida de gêmeos - meu irmão Lucas e eu - e que de boba não tinha nada, tratou de comprar uma enciclopédia Barsa com todos os seus doze volumes editados em capa de couro verde. Viva a prestação!
Como minhas irmãs eram muito jovens para utilizarem os livros em suas pesquisas, então a mãe decidiu não retirar os livros de suas embalagens e guardá-los em um lugar onde estivessem a salvo de qualquer traquinagem de suas filhas mais velhas. Sendo assim, deixou a caixa com todo o tesouro de conhecimento contido em seus doze volumes, pago em 12 prestações, no quarto de seus filhos gêmeos recém-nascidos, certa de que não haveria outro lugar mais seguro. Em verdade, devido à tenra idade, não recordo do ocorrido, mas dizem as más línguas que eu e meu irmão passamos uma manhã silenciosamente suspeita, despertando a curiosidade materna. Preocupada, ela foi verificar o que seus dois “anjinhos” estavam aprontando. Qual foi sua surpresa ao constatar que cada um de seus rebentos sugava, pois ainda não tinham dentes, um volume de seu tesouro, ainda não completamente pago. Fomos apelidados de traças e minha mãe levou exatos 12 meses para começar a achar graça dessa história.
Foi assim o primeiro contato que tive com a “Literatura” -- literalmente visceral, letras e trato intestinal, foi a primeira vez que devorei um livro. Com o passar do tempo viriam outros, mas até lá já teria aprendido a apreciá-los de forma menos ávida. Meus pais acharam melhor estimular o quanto antes a leitura de algumas obras infantis, até para evitar a praga que atacara outrora sua enciclopédia.
Durante toda a infância, fui obesa e isso não me permitia brincar com as demais crianças de igual para igual. Era sempre “café com leite” – aquela criança que é a última a ser perseguida no “pega-pega” para dar tempo que ela fuja -- o que me desestimulava a investir nas brincadeiras com outras crianças. Preferia ouvir e fingir ler minhas histórias. Certa vez, meu pai me deu um livro, mas infelizmente, não recordo o nome nem o enredo. Lembro-me de vir junto com o livro um disquinho em que podia escutar a narração de uma história sobre uma lua que queria se enfeitar e tentava conseguir um batom com um cavalheiro que lhe fazia a corte. A história, como já disse, não recordo bem, mas lembro como se fosse hoje de ouvir a trilha de Caetano Veloso, Lua de São Jorge. Eu adorava!
Tinha também uma coletânea de contos de fadas da Disney Quatro Estações. Eram trezentos e sessenta e seis contos, um para cada dia do ano. Era muito difícil de conseguir fazer alguém ler uma história para mim. Minhas irmãs achavam que era coisa de criança e a vó era semialfabetizada, mas nos finais de semana, às vezes, conseguia fazer a mãe esquecer seu cansaço e realizar essa leitura mesmo sob protestos das irmãs.
Certa vez, na Páscoa, quando todos esperávamos para receber nossos ninhos repletos de chocolates e bombons a mãe resolveu inovar. Há muito que ela brigava com a vó para me colocar em dieta, precisava emagrecer, mas minha avó era da época em que criança saudável era criança gorda! Pensando em me estimular a parar de comer tanto, a mãe comprou uma barra de chocolate diet e um livrinho que tinha duas histórias narradas em fita de áudio. Não recordo da segunda história, mas a primeira, essa sim me marcou muito. Seu nome? Dumbo, o elefantinho valente!
Meus irmãos riram de mim, dizendo que eu era a Dumbinha da mãe. Ela não sabia se os xingava, ou se me consolava. O fato é que levei um ano para ouvir pela primeira vez a história de um elefante de orelhas disformemente grandes que um dia, aconselhado por um amigo do circo, resolve voar com o auxilio de uma pena mágica. O elefante perde a pena e pensa que não poderá mais voar até que seu amigo que, se não me falha a memória é um rato, decide contar-lhe a verdade. A pena não possui nada de magia. A história é linda, mas até hoje penso no que teria motivado minha mãe a escolher justamente esse livro.
O tempo foi passando e influenciada por minhas irmãs aprendi a gostar de Legião Urbana ao invés de Xuxa. Já por influencia de meu pai, aprendi a ouvir Toquinho, Vinícius, Tom Zé, Geraldo Vandré e outros compositores que me despertaram o gosto pela poesia antes mesmo de completar 10 anos. Não era muito inteligente, mas tinha uma curiosidade incrível. Após ouvir uma das músicas da Legião Urbana fiquei intrigada com um trecho que dizia:
Estou cansado de ouvir falar
Em Freud, Jung, Engels, Marx
Intrigas intelectuais
Rodando em mesa de bar
(Renato Russo, 1987)
Em Freud, Jung, Engels, Marx
Intrigas intelectuais
Rodando em mesa de bar
(Renato Russo, 1987)
Lembro de ter enlouquecido, tentando descobrir quem eram os intelectuais que rolavam em mesas de bar, e, antes disso, precisava descobrir também o que significava ser um intelectual. Por causa desta música, li o Capital, de Carl Marx, aos 12 anos. Não entendi nada, mas fiz questão de ler inteiro! As músicas me apresentaram um universo novo e sedutor. Eu descobri que Brasília não era apenas um carro, o que significava ser démodé, o que era a Conexão Amazônica, onde fica Angra dos Reis, de onde vinha e para que servia o óleo de linhaça. Graças à música Monte Castelo descobri uma história de guerra que jamais estudei na escola, além de ser apresentada a um dos poemas mais lindos de Camões. Aprendi a diferença entre plágio e paráfrase. “O amor é o fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente” – qual foi minha surpresa ao descobrir que a letra não era, exatamente, de Renato Russo, tão pouco de Camões, isso também estava na bíblia!
Mergulhava tão profundamente nas letras de música que desenvolvi uma facilidade incrível de decorá-las em pouquíssimo tempo. Quando já estava no 2° grau, uma professora ficou chocada ao perceber que eu sabia recitar O Navio Negreiro, de Castro Alves, sem precisar ler. Aprendi com meu pai enquanto ele ouvia um disco em que Maria Betânia interpretava o poema. No vestibular, lembro-me de ter acertado uma questão sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha por causa da música Tropicália, de Caetano Veloso.
Com o passar dos anos perdi um pouco do ímpeto curioso da infância em que consultava no dicionário 3 em cada 5 das palavras que lia, mas jamais abandonei o hábito de ler uma boa obra. A paixão pela Literatura me colocou no curso de Letras. No do curso conheci teóricos que transformaram minha idéia de leitura. Apaixonei-me pela definição de “clássico”, de Italo Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Surpreendi-me ao constatar pessoalmente a eficácia das estratégias de leitura apresentadas por Ingedore Koch e Angela Kleiman. Identifiquei-me com os entusiastas da Literatura como Plauto Faraco, François Ost, Italo Calvino, Antonio Candido, etc.
Foi assim que a Literatura entrou em minha vida: aos poucos. Primeiro pelo estômago, depois pelo ouvido e quando me chegou aos olhos, consequentemente, à cabeça, tomou-me o corpo por inteiro. Não tenho certeza se alcançarei grande sucesso em minha vida profissional, mas tenho certeza de que sempre poderei recorrer a uma leitura bem sucedida. Minha história com os livros está apenas iniciando, mas como não poderia deixar de ser, encerro meu relato com o poema de Caetano Veloso.
Livros
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
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